O Município de Barcelos acaba de submeter formalmente a candidatura ao Inventário Nacional do PCI – Património Cultural Imaterial a “Arte de Bordar o Crivo em São Miguel da Carreira”, baseada num estudo da Associação Portugal à Mão – Centro de Estudos e Promoção das Artes e Ofícios Portugueses.
Esta iniciativa da autarquia barcelense visa promover, salvaguardar, registar e dar a conhecer esta arte têxtil tão emblemática do concelho de Barcelos e o seu vínculo ao território que lhe empresta o nome – São Miguel da Carreira. O projeto conta também com o apoio da União de Freguesias de Carreira/Fonte Coberta e da Junta de Freguesia de Cambeses.
A par do processo de certificação já em curso, esta candidatura pretende dar mais um passo no delinear do percurso futuro desta arte tradicional, contribuindo para a sua consolidação e desenvolvimento e para a promoção e reconhecimento das suas artesãs/bordadeiras.
A ação insere-se na estratégia do Município de Barcelos de valorização das artes e ofícios tradicionais e na sua preservação, enquanto argumentos de diferenciação do território como espaço criativo, com notoriedade em termos da Rede Mundial das Cidades Criativas da UNESCO. A iniciativa visa continuar a afirmação das artes e ofícios tradicionais da comunidade criativa barcelense como contributos para o desenvolvimento económico-social sustentável.
Por outro lado, esta candidatura inicia um ciclo de valorização do património imaterial concelhio que o Município quer ver inscrito no inventário nacional do PCI, caso das produções do figurado e da olaria, e das manifestações de culto, nomeadamente a Festa das Cruzes.
A candidatura da Arte do Bordado de Linho a Património Cultural Imaterial tem o apoio do programa EEC PROVERE MINHO Inovação, Touring Cultural (Identidade Cultural do Minho), no contexto das ações de desenvolvimento para classificação do património cultural imaterial do Minho.
Recorde-se que o Bordado de Crivo de São Miguel é a mais recente produção certificada no concelho de Barcelos – a terceira depois da Olaria e do Figurado.
Esta ação de comunicação é financiada pelo POAT – Programa Operacional de Assistência Técnica.
Contextualização*
“O bordado de crivo é um bordado a branco, cuja particularidade está na leveza que adquire, devido ao facto de se desfiar grande parte do linho de base, formando uma teia aberta, sobre o qual se bordam os motivos, e do qual surgem peças de grande e rara beleza. (…)
Os Bordados de Crivo são, hoje, um extraordinário exemplo da singularidade de uma arte que apesar de nunca ter tido função utilitária, constituía e constitui, uma forma de enriquecer os têxteis e indumentárias que de simples e singelos adquirem um requinte invulgar.
O linho que está na base das criações deste tipo de bordado é uma produção antiquíssima nas sociedades tradicionais do Portugal rural. De notar que em plena Idade Média, o linho aparecia já documentado como uma das principais atividades produtivas no Norte de Portugal.
É a indústria caseira mais característica do Minho. Por toda a parte e em quase todas as regiões da província é a ocupação feminina mais popular e mais generalizada. O trabalho efetua-se numa roca que as mulheres põem à cinta; fiam assentadas de pé ou andando; e dão a este trabalho quer a maior parte do tempo em certas estações, quer durante todo o ano as horas que lhe ficam vagas doutros serviços.
Em Barcelos, é na região sudeste do concelho, área fortemente marcada pela ruralidade e com um passado ligado à produção de linho, que se encontram ainda muito enraizados os Bordados de Crivo, certamente por herança de gerações e gerações de famílias, especialmente da freguesia de São Miguel da Carreira, mas também de outras freguesias vizinhas como Couto Cambeses, Moure, Fonte Coberta e Sequeade. (…)
A mais antiga referência a esta produção na freguesia da Carreira data de 1886 e corporiza-se numa toalha da autoria da bordadeira Ermelinda da Silva Leitão, que faleceu com 68 anos, a 11 de Novembro de 1929 nesta freguesia. Esta peça, atualmente com mais de 130 anos, foi legada a uma sobrinha da referida bordadeira e é um extraordinário exemplo da antiguidade desta produção na freguesia de São Miguel da Carreira. (…)
Existem outras peças com antiguidade digna de registo que rememoram o percurso desta produção, nomeadamente as existentes no Salão da Junta de Freguesia da União de Freguesias da Carreira/Fonte Coberta que mostram a continuidade e evolução desta produção, pelo menos no espaço de 130 anos. Esta forma de artesanato, pela sua grande exclusividade e detalhe, gerou um interesse que há muito extrapolou a sua realização apenas em âmbito familiar, a comercialização foi uma imposição de mercado, em boa medida motivada pelas famílias abastadas e entidades religiosas, sendo de referir que houve um momento especial no reconhecimento deste artesanato de Barcelos, nomeadamente com o avanço das comunicações terrestres, que desde o final do século XIX e durante o século XX, motivaram um mais rápido reconhecimento desta arte no panorama nacional e impulsionaram de igual modo a sua democratização enquanto produção artesanal acessível a distintos e mesmo longínquos públicos. Aliás, a freguesia de São Miguel da Carreira em meados do século passado era mesmo um grande centro de comércio desta produção para todo o país, situação inerente às palavras de Ana Breguesa, um dos nomes maiores desta arte que refere: “Dantes ia muitas vezes ao Porto vender os trabalhos, mas agora as freguesas vêm aqui a casa. Vêm de Guimarães, do Porto e de muitos lados (….)”. Naturalmente se associarmos esta realidade ao facto desta freguesia ter uma localização e acessibilidade privilegiada nos finais do século XIX, com a abertura da Linha do Minho em 1877, o que permitia, ao tempo, uma facilidade de escoamento dos produtos e Caderno de Especificações do Bordado de Crivo de São Miguel da Carreira 8 de 38 colocação dos mesmos em cidades como Porto ou Braga, percebe-se a longevidade da notoriedade desta produção nos grandes centros urbanos. (…)
A localidade beneficiava também da importância que a estação de Nine registou em grande parte do século XX, como um dos principais entrepostos ferroviários a norte do Porto. Paralelamente a esta realidade, a área do vale do Este onde se incluem as freguesias de Carreira, Silveiros, Viatodos e Nine, foi muito usada como zona de veraneio e fim-de-semana de famílias abastadas do grande Porto, o que potenciou ainda mais o conhecimento e busca dos artefactos desta produção. Este contexto socioeconómico não é alheio à notoriedade que o Bordado de Crivo de São Miguel da Carreira atinge em meados do século XX. Muitas foram as mulheres deste concelho que, na sua infância, aprenderam a fazer este emblemático bordado. E fizeram-no através dos ensinamentos das suas mães, pessoas amigas ou vizinhas, como era o caso das bordadeiras mais experientes e mais conhecidas que, nas soleiras de suas casas, juntavam grandes grupos de jovens e senhoras, que tinham nesta arte uma ocupação quase permanente, pois nos dias chuvosos e frios ou nas horas de maior calor no verão e, ainda, nos intervalos das lides de casa, da lavoura ou pela noite dentro, bordavam como forma de obterem um rendimento que lhes permitisse um certo desafogo na economia familiar. (…)
O conhecimento da arte de bordar era um “dote” muito valorizado nas jovens em idade casadoira em São Miguel da Carreira, como na generalidade desta região. Em tempos, a dimensão desta atividade na região levou mesmo à estruturação de uma hierarquia de produção, como forma de melhor rentabilizar a atividade, pelo que as tarefas eram divididas pelas diversas bordadeiras em diferentes ciclos de produção, algumas delas faziam o boleio, outras delimitavam as peças, outras teciam e o bordar, propriamente dito, estava reservado a um grupo normalmente mais restrito de bordadeiras muito experimentes. A vivacidade desta produção começa a ganhar notoriedade nacional nos anos 30 e 40 do século XX, altura em que aparece na Parada Etnográfica da Festa das Cruzes, em Barcelos, designada de indústria, conforme se pode comprovar na citação do Jornal de Notícias de Barcelos de 21 de Junho de 1934 que referia “um carro com a indústria de Bordados de Crivo”. Ainda, neste período, de referenciar a Feira de Vila Nova de Famalicão, presente no Filme de Manoel de Oliveira, produzido em 1940, com imagens de toalhas em Bordado de Crivo da Carreira. Deve referir-se que, hoje em dia, a grande maioria das bordadeiras tem mais de 60 anos, facto que vai ao encontro da, já referida anteriormente, mudança do paradigma da vida da mulher que se vivenciou na sociedade desde meados do século XX e que conduziu à perda de mão-de-obra nesta área. Consequentemente, deve referir-se que o Bordado de Crivo de São Miguel da Carreira ainda é para muitas dessas mulheres um labor exercido de forma complementar e que significa um rendimento extra para a economia familiar. Isso mesmo é relatado pelas Bordadeiras que descrevem situações de jornadas de trabalho noturno em família, à luz das lamparinas de petróleo, com o intuito de satisfazer encomendas. Nestas jornadas, todos tinham tarefas, naturalmente que o bordar, nomeadamente as tarefas mais técnicas, ficavam a cargo das mulheres, contudo as fases mais simples como tirar ou cortar fios ficavam a cargo dos homens ou mesmo das crianças. (…)
Foram e são estas bordadeiras do crivo de São Miguel da Carreira e de várias freguesias vizinhas, que o tornaram tão popular na região e no país, sendo por isso grandes responsáveis por esta arte identitária do concelho de Barcelos, uma tradição antiga, de grande precisão artística, que confere às suas peças características muito próprias que as diferenciam muito dos restantes bordados minhotos. (…)
Embora o Bordado de Crivo de São Miguel da Carreira esteja intimamente ligado a esta freguesia do concelho de Barcelos, a sua área de produção ultrapassa as fronteiras geográficas desta mesma freguesia, estendendo-se às freguesias vizinhas e contíguas, incluindo até alguns concelhos vizinhos. Com efeito, esta produção não pode ser dissociada dessa área geográfica mais alargada. Calvet de Magalhães refere-se ao Bordado conhecido de “São Miguel da Carreira” como sendo de “Barcelos” numa alusão ao facto desta produção se estender a mais freguesias do concelho.
Regista-se em finais do século XX, nomeadamente a partir da década de oitenta, a propagação deste saber-fazer ligado ao Bordado de Crivo para as freguesias de outros concelhos, com os quais as freguesias a sul de Barcelos fazem fronteira, nomeadamente nos concelhos de Vila Nova de Famalicão e Braga, especialmente naquelas onde se registam focos de desenvolvimento urbano e habitacional”.
*Excertos retirados do Caderno de Especificações do Bordado de Crivo de São Miguel da Carreira (2018)